Reencarnação: Uma Nova Chance Para Todos
Tema basilar do Espiritismo e sua conexão com o Cristianismo será abordado em palestra no GEAE
A reencarnação é uma premissa descoberta pelo Espiritismo ou experiência apontada pelo próprio Cristo? Tema controverso ainda no momento atual, em que o desenvolvimento da doutrina espírita e de diversas correntes científicas comprovam que a vida após a morte uma realidade do ser humano, a reencarnação ainda é objeto de debates e dúvidas. Reconhecida pelo Espiritismo e outras correntes ligadas ao Cristianismo, em um campo mais liberal, esse é o tema de palestra que Ricardo Lindemann proferirá no Grupo Espírita Abrigo da Esperança (GEAE) às 20h do dia 27/02. Titular de conhecimento e experiência variados, Lindemann é importante conferencista brasileiro e figura hoje entre os mais prestigiados palestrantes internacionais no campo em que atua. Engenheiro civil, Lindemann abriu mão das pranchetas para dedicar-se ao estudo profundo da espiritualidade. Teósofo, Mestre em Filosofia da Religião, Doutorando em Ciência da Religião, membro permanente do Conselho Nacional da Sociedade Teosófica no Brasil e Bispo da Igreja Católica Liberal, ele é categórico ao afirmar que a reencarnação está claramente apontada nos Evangelhos cristãos e propõe um debate profundo em torno da sua importância para a melhoria da existência na Terra. Em conversa com o orador e escritor espírita Denizard Souza, especialmente para o Boletim Informativo do GEAE, Lindemann adianta alguns pontos da palestra. Leia os principais trechos da conversa:
Como você contextualiza a reencarnação à luz do Evangelho?
Ricardo Lindemann – Em primeiro lugar, a grande passagem mais explícita está em Mateus (XI, de 13 a 15), quando Jesus fala aquela famosa frase que talvez seja a mais direta: “e se quiseres dar crédito, esse é o Elias que estava por vir. Quem tiver ouvidos para ouvir, ouça”. Ele dá a entender que nem todos estavam abertos a ouvir, mas que a ideia é que Elias havia retornado no corpo de João Batista. Vamos contextualizar, Jesus havia sido questionado e estava respondendo sobre João Batista. Ele chega a dizer que os nascidos do reino de Deus eram um caso, mas dos nascidos de ventre de mulher, ele, João Batista, era o maior; simbolizando que ele mesmo ainda não tinha aberto os canais para a lembrança das vidas anteriores. Por que muitas pessoas que estudam o Evangelho se fixam na pergunta dita ou feita diretamente a João Batista, que quando perguntado se era Elias ele respondeu que não, apesar de Cristo ter afirmado que sim. Mas se vamos medir forças, posso dizer assim, do argumento, entre o que diz o Cristo e o que diz João Batista, para mim essa passagem é clara. Jesus diz que ele era o maior dos nascidos neste mundo e o menor dos nascidos nos céus, mas que ele era Elias. Portanto, ele não tinha ainda a lembrança das memórias extra cerebrais dos nascidos na iniciação superior. E tinha, portanto, limitações para lembrar suas vidas anteriores.
É bom que se diga que, ao final do texto, os demais discípulos entenderam que Jesus falava de João Batista.
- L. – Isso se encontra em Mateus (XVII, de 10 a 13) e também contextualiza, por que é perguntado sobre a grande profecia: “por que dizem então, os escribas, que Elias venha primeiro” e eis a resposta, em que Jesus diz “em verdade, Elias virá primeiro e restaurará todas as coisas. Mas digo-vos que Elias já veio e não o conheceram, mas fizeram-lhe tudo o que quiseram. Assim farão eles também padecer o filho do homem”. Quer dizer, ele acaba similarmente assassinado.
Há uma outra passagem, que Allan Kardec coloca no Evangelho Segundo o Espiritismo, que é o diálogo de Jesus com Nicodemos em que a pergunta não está explícita, mas Jesus responde “em verdade, em verdade vos digo que aquele que não renascer não poderá entrar no reino dos céus”.
- L. – E Nicodemos reage e pergunta “mas terei eu de voltar ao ventre de minha mãe para nascer novamente?”. Quer dizer, ele tomou o ponto de vista físico e Jesus manifesta uma certa surpresa ao indagar a ele “mas tu és doutor em Israel e não sabe?”; dando a entender que deveria ser óbvio para um homem da sua estatura e conhecimento saber disso. Mas o fato, é que na resposta fica mais do que clara a ideia não do retorno necessariamente físico, mas de um novo nascimento. Essa passagem pode ser vista de um ponto de vista físico, de um ponto de vista espiritual, mas com certeza simboliza o eterno, o ressurgir. Então, se você coloca do ponto de vista espiritual é a ressureição, se coloca do ponto de vista físico é a reencarnação. Logo depois, Jesus coloca “o que é do corpo é do corpo, o que é do espírito é do espírito”. Na contextualização de várias passagens que aludem à ideia do retorno, a de Elias em João Batista não é teórica, é um exemplo que estaria ocorrendo em sua época, de um caso conhecido pelo Cristo. Existe uma passagem no Velho Testamento. Não vamos nos esquecer que o Cristianismo é uma reforma do Judaísmo. E essa passagem fala explicitamente da preexistência da alma e estabelece, veja só, uma relação de causa e efeito. É dito assim, no Livro da Sabedoria no caso atribuído a Salomão: “eu era um menino bom, dotado de uma boa alma; ou antes, como era bom, vim para um corpo sem mácula “. Isso estabelece que o corpo que ele mereceu receber era devido a causa prévia de ter uma alma boa. Estabelece uma relação de causa e efeito (karma) e a preexistência da alma em relação ao corpo. Por esse motivo, na Bíblia de Jerusalém, essa passagem chega a ter uma nota de rodapé na edição brasileira dando a entender que não se interpretasse como preexistência da alma, mas essa é exatamente a interpretação possível e óbvia. Isso se encontra no Livro da Sabedoria, capítulo VIII, de 19 a 20, e eu considero uma das importantes evidências de que esse ensinamento já existia na tradição judaica, pois há diversas passagens bíblicas sobre o tema (Vide também Mateus XVI: 13 – 14; Mateus III: 3; Marcos I: 2 -3; Lucas I: 17; Malaquias III: 23 ou IV: 5; Isaias XL: 3 e XLV: 2; etc.).
Quatro séculos se passaram, quase cinco, e de repente há uma ruptura da reencarnação na história do Cristianismo, com Justiniano e o Concílio Constantinopla Segundo. Fale-nos um pouco sobre isso.
- L. – Esse é um momento doloroso da história do Cristianismo. Primeiro, nós temos que ver que os bárbaros já estavam se avizinhando, já haviam tido os ingressos. Então, de alguma forma queria já, o Justiniano (Iustinianus, O Grande, imperador Bizantino de 527 a 565), resgatar a união do antigo império romano que estava fraturado. E na verdade, ele, com Belisário (Flávius Belisarius, general do Império Bizantino), retomou Roma por algum tempo. Mas com isso, ele veio dominado por uma ideia de unificação padronizada, então toda e qualquer ideia ligeiramente divergente da interpretação que ele compreendia que unificaria o império era perseguida, considerada herética, a tal ponto que ele quis, então, impedir o florescimento ou a continuidade da Academia de Platão (um dos mais importantes filósofos gregos) em Atenas e a fechou por decreto em 529. É triste dizer, mas em 553 ele convocou o Concílio Constantinopla Segundo e, dando continuidade a essa mesma linha de raciocínio, simplesmente consegue a condenação dos três capítulos que abrangem o livro onde Orígenes (de Alexandria, teólogo, filósofo e padre grego, um dos principais escritores do início do Cristianismo, perseguido por adotar aspectos da filosofia de Platão em suas obras) sustenta a reencarnação, que é chamado Peri Archon, em grego. A versão que nós temos em português se chama Sobre os Princípios e é baseada na tradução latina De Principiis. Essa versão foi alterada, como o próprio padre Rufinus de Aquilea coloca no prefácio de sua tradução, ele afirma ter corrigido o texto grego que estaria com interpolações heréticas e que um santo, como o padre Orígenes, não poderia ter escrito aquelas barbaridades. Na verdade, as barbaridades eram a reencarnação. Então, o padre Orígenes teve seu raciocínio amputado, por que no início nós temos a preexistência e no fim nós temos a salvação universal, ou apocatástase, e no meio está faltando aquilo que é o método pelo qual ocorreria a expiação dos pecados; que ele sustenta ser necessário para a salvação universal, seriam as chances sucessivas da reencarnação. Isto foi amputado do livro na tradução de Rufinus. Então há uma discussão intelectual profunda, por que não existe mais nenhum exemplar do original grego, houve uma condenação no Concílio Constantinopla Segundo e todos os elementos do livro em grego foram sistematicamente destruídos. A única versão que temos é a versão modificada em latim, que sabidamente não é confiável, pelo próprio prefácio. A conclusão que nós temos é que esse pensamento foi julgado tão perigoso pelo imperador Justiniano que ele ordenou a sua destruição. Das mil obras que havia escrito Orígenes, sobraram apenas três. Ele, De Principiis, sobreviveu com amputações. Esses três pontos nós sustentamos na dissertação de mestrado (Reconciliação do Platonismo com o Cristianismo…, UnB, 2014 – disponível gratuitamente na internet), que suscitou certa polêmica e quero desenvolver com mais profundidade na palestra.
Do ponto de vista prático, social, como você entende as consequências práticas para toda a civilização ocidental moderna, influenciada e modelada pelo Cristianismo, da retirada do pensamento reencarnacionista? Qual a consequência prática disso?
- L. – Tenho para mim que o primeiro problema que aparece é uma sensação de injustiça. E diz a doutora Besant que “aquilo que fere não é a injúria, mas o ressentimento, a sensação de algo errado, o sentimento de ter sido injustamente tratado” (BESANT, Annie. A Doutrina do Coração. Brasília: Teosófica, 1991. p. 79 – 80). Por que, se eu sofro, mas compreendo que fiz algo que causou como merecimento aquele sofrimento, eu o recebo de uma forma muito diferente do que a segunda opção, de admitir que Deus seria injusto. Eu acho que a maior causa da tendência de ateísmo no Ocidente é diretamente derivada da perda da reencarnação no Concílio Constantinopla Segundo. A consequência desta perda é o ateísmo e todo o materialismo que daí decorre e acho que Allan Kardec, Blavatsky (Helena Petrovna, escritora, teóloga e filósofa russa fundadora da Sociedade Teosófica em 1875, nos Estados Unidos) e outros pensadores, que tentaram resgatar as milenares doutrinas do carma e da reencarnação, tinham a missão de vencer uma zona sombria do materialismo científico do século 19, motivo pelo qual não só Kardec e Blavatsky tentaram trazer a questão do ponto de vista filosófico e religioso como buscaram evidências científicas. É nítida a diferença do enfoque antigo, que apenas tomava a questão por silogismos lógicos, para a obra de Kardec e Blavatsky em que, necessariamente, a ciência tem de participar. Aí nós vemos a necessidade do resgate do sentido da reencarnação como elemento que traz paz e consolo ao coração humano e restabelece a imaculada justiça e sabedoria de Deus.
Allan Kardec em O Livro dos Espíritos perguntou “como pode a alma que não atingiu a perfeição durante a vida corporal terminar de depurar-se” e os espíritos responderam “submetendo-se à prova de uma nova existência”. Como você relaciona o tema da reencarnação com a ideia do aperfeiçoamento progressivo?
- L. – Eu posso citar de duas formas e começo por Orígenes. Ele cita passagem do Velho Testamento que diz que “o homem foi feito à imagem e semelhança de Deus” (Gênesis I: 26 – 27). Só que ele interpreta de uma forma brilhante e diz: “Deus nos deu a imagem, mas a semelhança tem de ser por nós conquistada”. É muito lindo, uma parte nos foi dada, com uma potencialidade do que poderemos ser, pois a divindade habita em nosso coração. Mas a conquista de torná-la florescente e exuberante nos seus atos, isso terá de ser feito talvez por várias e sucessivas experiências em que, numa encarnação, se pode ver que não é possível.
Então a reencarnação, nesse sentido, é uma necessidade prática de que a alma retorne para que possa continuar a evoluir?
- L. – Sim, por que Jesus também diz “sede vós perfeitos como o vosso pai celestial é perfeito” (Mateus V: 48). Vê que ele não diz sê bonzinho e terás uma cadeirinha no céu, ele diz sede perfeitos como Deus é perfeito, então isso não é tarefa apenas para uma reencarnação. Numa única vida nós não vamos conseguir atingir, e também diz São Paulo, Efésios IV: 13, ainda acrescenta “até que todos nós alcancemos a unidade da fé e o conhecimento do filho de Deus, o estado de homem perfeito, a plena medida da estatura do Cristo”. Olha não é nem ficar parecido, a medida da plena estatura do Cristo, eu acho inatingível numa única encarnação. Então a perda da doutrina da reencarnação tem uma segunda consequência e cria uma espécie de abismo instransponível entre o homem e o Cristo; e torna vago o ensinamento do Cristo de que nós também podemos nos cristificar. A ideia de uma evolução em direção a um ponto ômega, a ideia de um processo evolutivo que nos cristifica, fica igualmente amputada porque não há tempo viável para que essa perfeição seja alcançada, quando ela é apresentada no imperativo “sede perfeitos como vosso pai celestial é perfeito”. Isso é um mandamento, não é uma sugestão. É um mandamento evolutivo, assim como é dito “crescei e multiplicai-vos”(Gênesis I: 28). Até do ponto de vista externo há um mandamento evolutivo e uma meta de perfeição. As duas coisas, evidentemente, não são possíveis se uma única reencarnação nos é oferecida.
Como você enxerga o papel, a missão, do Espiritismo promovendo a ideia da reencarnação?
- L. – Eu acho que na forma como surgiu nos Estados Unidos e em parte da América, ele tomava uma posição fenomênica, que Blavastky inclusive critica. Mas ela critica exatamente a falta do sentido filosófico da reencarnação, quando se buscavam apenas os fenômenos, às vezes ficavam meio circenses, espetaculares, e às vezes até havia interesses comerciais em fazer sessões que eram desse tipo, pois virou um apelo à população que estava buscando comunicação com filhos mortos na Guerra da Secessão. Mas quando for ver a situação em Kardec, muda completamente, por que ele dá corpo filosófico àquela doutrina juntamente com o carma e a reencarnação. Ele não se atém ao aspecto fenomênico, que poderia até sofrer outros tipos de exploração que foram criticados na época, mas, isso sim, coloca um elemento que traga, com o acréscimo de Francisco Xavier, a ideia da caridade. Eu vejo três pontos: o primeiro, a origem, segundo (Arthur, escritor americano) Conan Doyle em A História do Espiritismo ele puxa um pouco mais para os Estados Unidos, não sei se é impressão da minha leitura; e Kardec no início é um pouco esquecido tanto que na França não progrediu muito, onde seria o berço da doutrina, não progrediu muito. Ela vem progredir no Brasil por que foi inserida a ênfase no ensinamento da caridade, e nós não podemos esquecer, eu creio, da grandeza de Francisco Cândido Xavier, o acréscimo de uma vida abnegada, de uma vida de caridade, uma vida que buscava a salvação do sofrimento que, mesmo em Kardec, tem um colorido mais científico. A gente sente que em Chico Xavier a situação é outra. O Brasil com as suas origens, tanto na miscigenação das raças como na contribuição xamânica de origem indígena e nos rituais africanos que trazem também elementos mediúnicos, nós vemos que se cria uma amálgama com o Cristianismo trazido pelos portugueses e surge alguma coisa que não tem comparação exata e por isso cresceu no Brasil como não há em outro lugar.
Como você se sente visitando o GEAE e qual sua expectativa com a palestra?
R.L. – Sinto-me muito honrado com essa oportunidade e tenho a preocupação com um tema tão vasto, que uma palestra poderá suscitar um interesse. Se nós chamarmos o tema e o mantivermos vivo na pesquisa das pessoas, se as pessoas refletirem e levarem o tema a sério nós podemos aprofundar, por que todas as religiões na história da humanidade, passados os séculos, têm entrado em regime de acomodação. A reencarnação tem uma grandeza tão extraordinária, mas se você perceber a Índia, que está embebida nisso desde suas origens. Por que Madre Teresa produziu um efeito tão grande na Índia? Por que a Índia estava num regime de acomodação. Uma interpretação errada do carma, apenas justificando com indiferença e sem caridade que o sofrimento dos outros seria merecido, e falta de profundidade no estudo da reencarnação também podem gerar problemas. A oportunidade de nós aprofundarmos e resgatarmos as origens – inclusive cristãs, que o Cristianismo emitiu – é extraordinária, em que nós podemos aqui aprofundar, dentro do possível, num ambiente fraternal, com o objetivo comum de todos os questionamentos do carma e da reencarnação, que é em Deus, senão a vida perde o significado.
Como você resumiria, em suas palavras, a reencarnação?
R.L. – Compaixão divina, por que nos dá uma nova chance. Caso contrário, nos cairíamos na ideia do inferno eterno que é uma aberração de tudo o que se ensinou de amor em Deus. Obviamente, Jesus não poderia ter ensinado isso. Jesus ensinou a compaixão, o perdão, e obviamente o que havia por trás dessa ideia, que ele não queria chocar, é que haveria tantas chances e moradas quanto fossem necessárias. Eu acho magnífica a ideia da reencarnação que o cristianismo primitivo emitiu e qualquer um que quiser resgatá-la em nós, e ai se edifica a figura de Allan Kardec e Chico Xavier como estandartes de luz num mundo que perdeu a essência da espiritualidade, que tanto é necessária nos tempos modernos.